Uma escala no céu
- Martha Sampaio
- 7 de set. de 2019
- 2 min de leitura

Se há algo divino na infância (por infância entenda-se uma criança com vida digna, bem nutrida de leite e de afetos e de limites e de oportunidades), é a presença límpida e inabalável da esperança.
Gravei aquele momento como uma fotografia (impressa em papel - só para ter certeza que você captou). A cautela na voz do meu pai e o olhar da minha mãe buscando nos abraçar. Lembro da cor do sofá, da fita que usava no cabelo, da pequena sala, da luz daquele final de tarde. Morávamos em Los Angeles, meu pai tinha sido transferido para um baseamento pela Varig. Quer dizer, mais próximos do que nunca um do outro e a milhas de distância da grande família.
Lá estávamos eu e minha irmã (meu irmão tinha um ano) alertas e mudas - aquilo não tinha a menor chance de ser uma conversinha qualquer. Algo bem importante estava rolando ali. Devo ter fotografado a cena no instante em que ele disse: “Minhas filhas, vocês sabem que a Didi vinha sofrendo muito a coitadinha. Mas agora ela tá feliz. Ela foi pro céu e tá junto dos anjos e do papai do céu.”
A Didi era aquela tia-avó-solteira-mãe-de-incontáveis-filhos-que-não-teve. A encarnação perfeita da mãe de todos. Bonachona na lida e generosa na alma. Com colo largo e mesa farta para acomodar tantos quantos fossem os filhos dos outros e os filhos dos filhos dos outros. “A Didi foi pro céu” durou uma fração de segundo e decifrei: “A Didi morreu. Nunca mais vou ver a Didi”. Chorei miúdo e comprido e fundo a minha tristeza.
Dias depois, meu pai fardado para mais um voo, se aproximou para me dar um beijo, quando pedi que esperasse só um minutinho que eu tinha uma coisa para entregar a ele. Corri no quarto, abri a caixinha que guardava as memórias e segredos da minha longa jornada - sempre fui amante de caixinhas e mais caixinhas, ainda sou -, peguei o envelope cuidadosamente selado, corri e alcancei a ele: “Pai, quando tu passar pelo céu, tu entrega isso pra Didi?” “Claro, minha filha, pode deixar que eu entrego. Garanto que ela vai gostar”.
Logo ali, a vida seguiu reidratada e perfeitamente normal. Só pode ser a esperança que faz isso com a gente.
Até.
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