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O vilão não é o Peru

  • Martha Sampaio
  • 18 de dez. de 2020
  • 3 min de leitura



Semana anterior à semana que antecede a semana que antecede a semana que antecede a semana da véspera de Natal. Supermercado lotado. Coisa de uns 60 carros por minuto. Por corredor. As duas, abduzidas por suas urgências, impediam a passagem. Sabe blitz? Pois foi o que rolou ali. Entrou, amiga? Lamento, vai parar.


Respirei fundo meus modos de boa menina. “Por favor, eu poderia..”- um suspiro, quase um pedido de desculpas. Nada. “Com licença..” Nada. “Eu gostaria..” Nada. A essa altura - e na condição de mulher invisível - ouvir conversa alheia ganhou respeito. E freou os hormônios que voavam rumo a um “Calem a boca e deixem eu passar!”


A crise: ceia de Natal. Precisamente, o Peru de Natal. “Claro, sua boba. Estamos na semana anterior à semana que antecede a semana que antecede a semana que antecede a semana da véspera de Natal.” A coisa era de uma ansiedade tal que ondas de energia aflitiva vagavam no ar. Visíveis. Fui com as mãos nos bolsos, vá que tivesse um caquinho de valium que carrego comigo vez que outra. Nunca se sabe.


O dilema era quase metafísico.


Plano 1: contar com a gerente-pró-gastronomia-e-assuntos-gerais-e-aleatórios-do-lar. “Ah, foi-se o tempo, queridinha. Ela vai pra praia.”


Plano 2: assar o Peru. “E minha hora no Marquinhus? Pés, mãos, depi? E a pele? Olheiras, suador? Fora de questão.”


Plano 3: encomendar a um(a) Chef. “Tem aos montes, guria. Mas é peso de ouro, ainda mais se o bicho for grande.”


Plano 4: pegar o Peru assado ali no super às 7h do dia 24. “A questão é a fila, menina. Tem que madrugar, é um avanço! Também, um precinho que dá pra pegar uns dez.”


Se foram 30 minutos ou segundos, não sei. Viajei. Aquela agonia natalina me arremessou a uma doce lembrança de infância: Natal na casa de meus avós.


No início de Dezembro, a preparação da árvore. Nada de pressa ou prazo. Ficaria pronta naquela noite ou dali a várias. Não era uma missão. Era o ritual de criar, a várias mãos e sem nenhuma dúvida, a árvore mais bonita do mundo.


Dias antes da véspera, era a vez do Peru. A enorme ave era mergulhada na enorme bacia onde “iria descansar para pegar sabor”. Com uma seringa também enorme, aprendemos a dar injeções no Peru com o tempero feito pelas mãos daquela casa. Quanto maior o carinho ao fazê-lo, mais saboroso ficaria. Chegava o dia do Bole, bebida que mistura pedaços de frutas com vinho branco, levemente adocicada - o Clericot das nossas infâncias. Era, então, o meu avô quem assumia a artesania. De outro jeito, “não dava no ponto”.


Tínhamos respeito por nossos rituais. Que nos conduziam a uma noite invariavelmente feliz. Com serenidade e propósito. Com amor e elegância. Com esmero e paciência. Protegidos, delicadamente, da estranha pressa de chegar.


Pode que os Perus de hoje venham prontos de fábrica, porque pegaram horror à injeção. Pode que os fornos pós-modernos aqueçam além da conta levando gentes e Perus à loucura. Pode que as árvores estejam mais complexas. Ou competitivas. Pode que os presentes tenham subido na hierarquia. Pode que os tempos tenham mudado. E o mundo tenha desaprendido a viver. Sem correr. Sem se estressar. Sem entrar em agonia. Porque é Natal.



Nota: já faz algum tempo que escrevi esse texto. Hoje, diante de um ano que subverteu a ordem dos nossos hábitos, egos, manias, sentimentos e emoções, me pergunto: é mesmo possível que a humanidade reaprenda a viver? Feliz Natal!



Até.


 
 
 

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