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Lição de casa

  • Martha Sampaio
  • 21 de out. de 2019
  • 2 min de leitura



Filhos nos habitam de um jeito largo e vigoroso. Quase não nos reconhecemos diante deste querer diferente, furioso e despido - uma condição do amor que dói como o paraíso. Ansiosos desse amor, nos colocamos no alto, imprescindíveis. Somos o guia, a luz, o modelo, o ensinamento, o norte, o sim e o não. Imaginamos (ou desejamos) ser super-humanos. Crescer um filho desafia as nossas melhores intenções.


Ele andava ali pelos seis, sete anos. Inquieto e nada resignado, não deu ouvidos quando explicamos que aquele chaveirinho cheio de movimentos mágicos e divertidos tinha quebrado. Nada poderia ser feito, o chaveirinho já era. Pediu ajuda: “Desiste, filho, não tem como consertar, a gente compra outro”. Que outro nada, ele queria aquele chaveirinho. Pediu pela caixinha de mini ferramentas e outras traquitanas que consertam tudo. Sentou junto à mesa de centro da sala, era início de tarde. A noite ia longe quando ele faiscou de contentamento e ergueu a mão orgulhosa para exibir o resultado de tanto suor. Ou do que nós, adultos, conhecemos como perseverança, ou força de vontade, ou obstinação, ou inconformidade, ou determinação. Essas virtudes que nos ajudam a não dar ouvidos ao que os outros dizem, sem antes ouvir a nós mesmos. Cabum! na nossa cabeça. O chaveirinho funcionava perfeitamente.


Ela andava ali pelos seis, sete anos. Habilidosa e franca e agregadora, vivia cercada de afetos. Naquele dia, a professora pediu alguns minutos, precisava conversar conosco. A conversa: compartilhar seu encanto diante de uma situação inusitada na escola. Uma coleguinha nova e especial tinha integrado a turma. Costumava se isolar, pouco falava e menos ainda brincava ou se encaixava na balbúrdia do recreio. Ninguém orientou, ninguém falou, ninguém pediu. Sem descuidar suas brincadeiras e amigas e deveres, a Gabi passou a acompanhar a menina nova e especial. Abria braços, alma e coração, fosse para compartilhar trabalhos, ou para acolher a coleguinha na base do escorregador - era o jeito de a menina ganhar coragem e escorregar. Coisa da confiança que nos dá impulso. À noite, em casa, puxamos pelo assunto para expressar nossa admiração e carinho por algo tão lindo num coração ainda tão criança. Ela nos olhou com uma carinha de “Não tô entendendo nada”. Natural, ora: fraternidade, tolerância, inclusão, empatia, respeito, compaixão, solidariedade, igualdade nas diferenças - essas virtudes que nos ajudam a enxergar o outro como parte integrante de nós mesmos eram complexas demais para ela entender. Ela só sabia ser.


Não são poucas as lições que nossos filhos tentam nos transmitir ao longo da vida. Tentam, porque nem sempre estamos atentos, ou mesmo dispostos a aprender. Ouvir um filho é ter coragem de jogar fora alguns de nossos velhos e sagrados manuais, conceitos e convicções. E, quem sabe, até algumas de nossas melhores intenções. Se vem aperto daí, além das incontáveis alegrias, ah, vem. Mas que delícia isso de se perceber crescendo, sempre crescendo, sempre crescendo, através dos olhos de um filho.


Até.

 
 
 

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