Faça a sua queixa para a primavera
- Martha Sampaio
- 14 de jul. de 2019
- 2 min de leitura

“As coisas vão mudar por aqui. Já são duas horas da tarde! É inadmissível a calçada ainda suja do jeito que está!”
As gentes fazem tudo certo. Fazem tudo certo e têm energia estocada. Fazem tudo certo, têm energia estocada e determinação. Fazem tudo certo, têm energia estocada, determinação e responsabilidade. As gentes são incansáveis. Não são corpo mole. E, mesmo assim, as gentes não estão livres da verborreia boçal e estúpida de um(a) chefe que, não tendo músculos para enfrentar a vida, drena sua fúria em quem está - teoricamente - abaixo.
Não vá me dizer que nunca passou por uma experiência edificante como essa. Ou que não tem chefe. Todo mundo tem chefe. Até o chefe tem chefe. E o chefe do chefe tem chefe. Que também tem chefe. Quer dizer, em algum lugar do presente ou do passado (ou do futuro, pode esperar!), você já sentiu (vai sentir!) vontade de esganar alguém que tenha se valido de uma hierarquia hipócrita para te machucar. Hipócrita, porque respeito e boa educação não cabem em hierarquia alguma, certo?
Poucas coisas definem tão bem um caráter mirradinho quanto a facilidade que alguns têm de se agigantar com quem está abaixo e de se apequenar com quem está acima - teoricamente. Poucas coisas definem tão bem um grande caráter quanto a facilidade que outros têm de se equalizar com quem está a seu lado, acima ou abaixo - teoricamente.
Há um tempo atrás, a Dona Ana, funcionária do prédio onde tenho meu escritório, estava ali na entrada quando chegou o novo proprietário em vistas de ser o novo síndico. Ela, uma senhora com as marcas da lida à mostra, exibia a farda desbotada pela fadiga e pelo fardo de quem cuida, há duas décadas, da limpeza do prédio, do recolhimento dos lixos e afins, além de bicos com faxinas para melhorar a renda. Ele, um homem maduro jovem (vários anos menos que ela), recém lançado ao clube dos empoderados, exibia a farda bem cortada e a soberba congressista.
Ela lidava com mais uma jornada. Ele precisava se anunciar. Rude e diante dos que entravam e saíam, sentenciou: “As coisas vão mudar por aqui. Já são duas horas da tarde! É inadmissível a calçada ainda suja do jeito que está!” De vassoura na mão e com a serenidade dos grandes, ela respondeu: “Senhor, faça a sua queixa para a primavera”. Era primavera, a estação dos ventos e dos ipês brotando e colorindo calçadas de amarelos e rosas. Era a firmeza de espírito vencendo o medo. Ela varria calçadas há muitos e muitos anos. Ele, pelo visto, mal sabia andar.
Até.
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