Amor, um direito humano inalienável
- Martha Sampaio
- 26 de nov. de 2021
- 2 min de leitura

“Me diga uma coisa, Selo. Até que ponto um negro tem de aguentar? Me diga. Até que ponto?” “Até onde ele conseguir.”
Esse diálogo, entre dois ex-escravos já nos capítulos finais do romance Amada de Toni Morrison*, dá a medida do que encontramos nas páginas dessa narrativa. Ambientado em 1873, pouco depois da abolição da escravatura nos Estados Unidos, alterna paixão e dor ao retratar a memória e o cotidiano de uma gente libertada sem ser livre.
Revisitar os efeitos devastadores desse capítulo monstruoso da história dói. Machuca. Envergonha. Amada, contudo, vai mais fundo - transcende a barbárie dos fatos ao nos conduzir às entranhas, ao invisível, à escravidão da escravidão.
O invisível vem do olhar de Baby Suggs - mãe de oito filhos, dos quais só lhe foi concedido ficar com um. Baby Suggs morre sem saber do destino ou dos traços, jeitos e esperanças de seus outros sete filhos. Padece de um reencontro que nunca se realizou.
O invisível vem do olhar de mães, pais, filhos, irmãos, avós, amigos, amores desencontrados e perdidos por um punhado de moedas. Vem do olhar das mulheres confinadas à procriação. Ou, mais doloroso, do olhar da protagonista, Sethe, que mata sua filha na ânsia de poupá-la do destino de dor e atrocidades que ela própria sofre.
Amada é um soco na boca do estômago - reaviva a saga de milhares de seres humanos cuja cor da pele determinou a amputação de seus afetos.
Há pouco mais de século - ontem, na verdade - afetos eram abusados, emprestados, leiloados, arrendados, vendidos. Eram desintegrados. Do continente africano às sucessivas gerações.
O freio de ferro, o colar de pescoço, a fome, o açoite, tudo junto e somado, seguramente, doía menos do que perder um direito inerente a qualquer ser humano. Amor é a mãe de todas as liberdades. Quando tiramos isso de alguém, tiramos tudo.
Morrison, com sua prosa contundente e sensível, provoca: até onde é possível alguém aguentar?
Pergunte à grandeza de espírito, à força de caráter e à coragem que, arrancados a facão e fúria de suas raízes, não se ajoelham. Não se entregam. E seguem.
Até.
*A primeira escritora negra a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura em 1993.
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